
Talvez se possa afirmar que as conferências-projecções-viagens de Montreal, realizadas em finais dos anos setenta, foram a causa mais próxima de História(s) do cinema: construir uma história a partir do interior do cinema, com as suas próprias imagens, umas depois das outras; obrigar o cinema a agir, a marcar o seu território, mesmo numa altura em que o perdia ou já o perdera.
Mas se o projecto pode ser ancorado aí, o método operativo vem de trás. Desde sempre, como nenhum outro, Godard incorporou nos seus filmes a matéria cinematográfica. O desprezo (1963), por exemplo, não é apenas a história de Paul e Camille, não é apenas um documentário sobre o corpo de Brigitte Bardot, é também a impossibilidade de Fritz Lang filmar A odisseia — o fim de uma época.
Há mil e um caminhos para entrar nas História(s) do cinema de Jean-Luc Godard. E isto não é uma maneira de dizer, é uma imagem. Ora aí está: o objecto primeiro, ou então, corrija-se a ordem, o objecto último, uma criação pura do espírito. “São Paulo dizia ‘a imagem virá no tempo da Ressureição’. E então veio Roma, cidade aberta.” Godard
O tom é poético — uma elegia dir-se-ia, o elogio —, mas a construção é arquitectónica. Imaginemos, seguindo as suas palavras, que Godard ergue as paredes de uma casa: quatro paredes, quatro capítulos duplos, quatro materiais (imagens, palavras, música e ruídos).
Uma casa labiríntica, cheia de quartos abandonados, corredores sombrios, passagens secretas (cada imagem guarda em si uma força formidável mas “uma imagem nunca está sozinha”, diz Godard). Entre livros e filmes, entre a máquina de escrever e a mesa de montagem, dentro da memória (do mundo, do cinema, de si próprio), Godard pratica esse sentido especial de aproximação e do acordo: aproximar as coisas que nunca foram aproximadas e não pareciam predispostas a sê-lo.
Quando juntamos uma imagem a outra imagem a um som ou a uma palavra qualquer coisa acontece: reconstituimos a memória de algo que nunca existiu (fazer uma descrição precisa daquilo que não aconteceu é o trabalho do historiador), criamos uma linha de pensamento inesperada (um pensamento que forma uma forma que pensa).
Um olhar que não analisa nem explica, que recompõe. A história, as histórias com um “s”, todas as histórias que existissem, que existirem ou que existissem? Que existiram. O cinema como projecção de todas as histórias que existiram. É um plano diabólico? Sim, maravilhosamente diabólico. Facilis descensus averno.
Cristina Marti
Cristina Marti, 44 anos, nasceu e vive no Porto onde trabalha em artes gráficas (na tarefa técnica de preparar os trabalhos antes de irem para a gráfica). O blog Dias Felizes, que mantém com Rui Manuel Amaral, foi criado em finais de 2004. Antes disso participou num blogue colectivo chamado janela indiscreta que pertenceu à primeira ou segunda leva de blogues portugueses.
FICHA TÉCNICA
Título original: Histoire(s) du Cinéma
Título português: História(s) do Cinema
Realização: Jean-Luc Godard
Todas as histórias, 1988, 51’
Uma história só, 1989, 42’
Só o cinema, 1997, 27’
Fatal beleza, 1997, 29’
A moeda do absoluto, 1998, 27’
Uma vaga nova, 1998, 27’
O controlo do universo, 1998, 28’
Os signos entre nós,1998, 37’
Origem: França
Anos: entre 1988 e 1998
Duração total: 268’
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